Autora: Thais da Silva Santos.
Há muita confusão entre os pacientes e pais sobre a intolerância à lactose com alergia ao leite de vaca. Os sinais e sintomas de reações adversas a alimentos derivam de vários mecanismos, que podem ser desencadeados por diferentes componentes do mesmo alimento. As reações imunomediadas, ou seja, causadas por reações do nosso sistema imune, como por exemplo, as alergias alimentares e a doença celíaca, são desencadeadas por proteínas alimentares.
Porém, a grande maioria das reações adversas a alimentos derivam de intolerâncias a carboidratos, sem envolvimento de reação do sistema imune. Entre as crianças a intolerância a carboidratos mais comum é a intolerância à lactose [1, 2]
Sendo a intolerância alimentar mais comum, a intolerância à lactose, ocorre quando a atividade da enzima lactase é reduzida na mucosa do intestino delgado e os indivíduos passam a apresentar sintomas diferentes após o consumo de alimentos que contêm lactose.
No entanto, os indivíduos podem ser intolerantes à lactose em graus variados, dependendo da gravidade desses sintomas. Esses sintomas gastrointestinais podem ser semelhantes à alergia ao leite de vaca e podem ser erroneamente rotulados como sintomas de “alergia ao leite”.
Entretanto, existem diferenças importantes entre intolerância à lactose e alergia ao leite de vaca, portanto, o esclarecimento de suas diferenças poderia reduzir os mal-entendidos, tanto na abordagem diagnóstica quanto no manejo dessas condições [1, 2].
A lactose, popularmente conhecida como “açúcar do leite”, é a principal fonte de carboidratos no leite humano e de outros mamíferos, sendo que os bebês são adaptados exclusivamente à nutrição à base de lactose. Para se ter uma ideia, o leite de vaca contém aproximadamente 5 g de lactose a cada 100 mL, o que equivale a 12,5 g de lactose a cada copo típico de 250 mL.
Além do leite, a lactose também está presente em outros produtos lácteos manipulados, como iogurte e queijo. Após o processamento para produção do iogurte metade da lactose é consumida. Enquanto que o queijo, dependendo de sua maturação, tem baixo teor de lactose.
A lactose também é muito usada como aditivo em alimentos industrializados, com a finalidade de realçar a textura e o sabor de salsichas, molhos, margarinas, pães, molhos e muitas refeições preparadas[1].
Para os carboidratos serem ativamente absorvidos pelo intestino delgado seus constituintes precisam estar em sua forma mais simples, ou seja, como monossacarídeos (glicose, galactose e frutose).
No entanto, a lactose é um dissacarídeo, isto é, a junção de dois açúcares simples (galactose e a glicose), assim, para ser absorvida é necessário que aconteça uma “quebra”, para que volte a ser um açúcar simples. E a responsável por realizar essa “quebra” é a enzima β-galactosidase, mais conhecida como lactase [2]. Portanto, a absorção desse carboidrato só acontece com a presença e ação da lactase.
Qualquer causa de falha em digerir e/ou absorver lactose é caracterizada como má absorção de lactose, principalmente devido a deficiência de lactase no intestino delgado. Ou seja, a intolerância à lactose resulta de uma capacidade reduzida de digerir o açúcar lactose.
Entretanto, só é definido como intolerância à lactose quando há a presença de sintomas gastrointestinais após a ingestão de lactose [1].
A intolerância à lactose pode ocorrer devido três principais causas: deficiência congênita de lactase; deficiência de lactase do tipo adulto ou primária; e, deficiência secundária de lactase.
A deficiência congênita de lactase é uma doença extremamente rara caracterizada pela ausência ou redução desde o nascimento da atividade enzimática da lactase. Essa condição deve ser diferenciada da intolerância à lactose do desenvolvimento, que acontece com recém-nascidos prematuros que não desenvolveram completamente as células do intestino delgado, onde é produzida a lactase[2].
A deficiência congênita de lactase provoca sintomas graves como diarreia aquosa, meteorismo intestinal e desnutrição, começando nos primeiros dias após o nascimento, podendo levar a déficit de crescimento em bebês. A doença é decorrente de uma mutação no gene da lactase [1,2].
Na deficiência de lactase do tipo adulto ou primária é o tipo mais comum de intolerância à lactose e é geneticamente determinado. Ela ocorre após a produção da lactase intestinal cair drasticamente, tornando os produtos lácteos difíceis de digerir durante a infância (alguns anos após o desmame) ou adolescência.
Sabe-se que durante a fase de exclusiva amamentação os bebês obtêm toda a sua nutrição do leite e, como vantagem evolutiva, começamos a vida produzindo muita lactase. À medida que crescemos e substituímos o leite por outros alimentos, a produção de lactase diminui. Entretanto, algumas pessoas podem continuar mantendo o nível de produção de lactase em taxas altíssimas, podendo consumir a lactose sem restrições.
Pesquisas indicam que crianças de ascendência africana, asiática ou hispânica podem apresentar sintomas começando entre 2 e 3 anos de idade, enquanto indivíduos de ascendência europeia e americana normalmente não desenvolvem até mais tarde na infância (5-6 anos de idade) ou adolescência[1,2].
Já a deficiência secundária de lactase (ou adquirida) acontece quando condições patológicas (infecções, alergia alimentar, doença celíaca, supercrescimento bacteriano do intestino delgado, doença de Crohn ou enterite induzida por radiação/quimioterapia) que causam danos ao intestino delgado podem induzir uma redução na produção de lactase determinando uma deficiência de lactase secundária e transitória.
O paciente, os pais e o médicos podem desconfiar de intolerância à lactose quando após o consumo de lactose, essa não é digerida, o que pode então ser fermentada pela microbiota intestinal levando aos sintomas como dor abdominal, distensão abdominal, flatulência, náusea, aumento da motilidade intestinal e diarreia. Esses sintomas geralmente se desenvolvem de 30 minutos a 2 horas após a ingestão de alimentos contendo lactose.
O grau de sintomas nos indivíduos podem ser influenciadas pela dose de lactose na dieta, tempo de trânsito intestinal, produção da lactase, capacidade de distribuição e fermentação da microbiota intestinal, sensibilidade à estimulação química e mecânica do intestino e fatores psicológicos [1,2].
Para o diagnóstico alguns exames laboratoriais podem ser solicitados, dentre eles temos o teste de tolerância à lactose e o teste genético.
O teste de tolerância à lactose consiste em medir a glicose no sangue em diferentes momentos (por exemplo, 0, 30, 60 minutos) após a ingestão de uma quantidade definida (50 g) de lactose. Embora o teste não exija equipamentos complexos ou caros, o que reduz seu custo, sua natureza invasiva (múltiplas amostras de sangue) limita sua utilidade.
Um aumento da glicose plasmática de 20mg/dL ou mais indica a digestão e absorção, ou seja, uma tolerância à lactose [1,2].
O teste genético, apesar do custo, pois aplicam tecnologias de sequenciamento de DNA, apenas uma amostra de swab bucal é necessária. Vale ressaltar que o teste pode indicar o gene que dificulta a produção de lactase (polimorfismo -13910 C/T), mas isso não significa presença simultânea de intolerância à lactose ou mesmo que ela não vai se desenvolver em algum momento na vida[1,2].
A base do tratamento para reações adversas a alimentos é eliminar o alimento causador da dieta. As opções de tratamento para a intolerância à lactose incluem uma dieta pobre em lactose, reposição oral da enzima lactase, probióticos que produzem lactase bacteriana no intestino e, potencialmente, prebióticos que adaptam a microbiota intestinal [1].
Diferentemente de uma alergia alimentar, pacientes com intolerância à lactose não precisam ter uma dieta rigorosa sem lactose, pois normalmente suportam até 250 mL de leite (12 g de lactose) sem apresentar sintomas. A recomendação é a redução da ingestão de lactose, e não sua exclusão total na intolerância à lactose. Dessa maneira, nestes pacientes o tratamento dietético consiste apenas em uma dieta pobre em lactose (Observe a tabela 1 e quadro 1).
Na intolerância à lactose primária (sem doença intestinal associada), os produtos lácteos contendo lactose são geralmente evitados por 2 a 4 semanas, o tempo necessário para induzir a remissão dos sintomas. Então, uma reintrodução gradual de produtos lácteos com baixo teor de lactose até uma dose limite de tolerância individual é recomendada [2].
Comida | Lactose, g/100 g de alimento |
Leite de vaca desnatado | 4,7 |
Leite de vaca com baixo teor de gordura | 4,6 |
Leite de vaca integral | 4,5 |
Soro de leite coalhado | 4,1 |
Leite sem lactose | 0,5 |
Leite em pó integral | 35,1 |
Leite em pó desnatado | 50,5 |
Leite de cabra | 4,2 |
Leite de búfala | 4,9 |
Iogurte | 3,2 |
Manteiga | 4,0 |
Queijo tipo cottage | 2,6 |
Queijo mussarela | 1,5-2,0 |
Queijo de cabra | 1,5-2,0 |
Queijo ricota | 4,0 |
Queijo Parmigiano | 0-0,9 |
Queijo gorgonzola | 0 |
Queijo provolone | 0 |
Fonte:Adaptado e traduzido de (Di Costanzo & Berni Canani, 2018)
Alimentos a limitar | Alimentos permitidos |
A-Todos os tipos de leite: integral, baixo teor de gordura, desnatado, creme, em pó, condensado, evaporado, cabra, acidophilus e chocolate B-Manteiga, queijo cottage, sorvete, molhos cremosos/com queijo, queijos cremosos, queijos macios (brie, ricota), mussarela, chantilly, iogurte C-Peixe e carne (empanados ou cremosos) D-Pão de leite, bolachas, creme, recortado ou gratinado batatas E- Misturas para muffins, biscoitos, waffles, panquecas e bolos; leite com chocolate; Produtos de panificação e sobremesas que contenham ingredientes listados acima | A-Leite sem lactose, leite de soja B-Laticínios sem lactose, queijos duros (Parmigiano, Pecorino, Grana Padano, fontina, taleggio, provolone, suíço), gorgonzola C-Todas as frutas D-Todos os vegetais E-Todas as leguminosas F-Todos os cereais G-Todas as carnes, peixes e ovos H-Todas as gorduras vegetais |
Fonte: Adaptado e traduzido de (Di Costanzo & Berni Canani, 2018)
Atualmente no mercado alimentício há disponíveis diversos produtos lácteos sem lactose, em que a enzima lactase é adicionada, são considerados seguros, embora reações alérgicas tenham sido relatadas. A ingestão da enzima lactase por comprimidos melhora tanto a digestão da lactose quanto os sintomas, embora os efeitos sejam modestos (por exemplo, 18% com redução geral dos sintomas)[1].
Estudo recente, indica efeitos benéficos da suplementação de probióticos como Lactobacillus spp, promovem a redução nas cólicas abdominais, diarréia, vômitos, distensão abdominal e/ou flatulência, possivelmente por essas bactérias contribuírem para a produção de lactase no intestino[1,3].
Entre pacientes e médicos frequentemente confunde intolerância à lactose e alergia ao leite de vaca, o que pode resultar em restrição alimentar desnecessária ou reações evitáveis. O manejo dessas condições é distintamente diferente, e o reconhecimento ou manejo inadequados podem ter implicações significativas para o paciente[2].
A intolerância à lactose, como mencionado, resulta de uma capacidade reduzida de digerir a lactose, um açúcar. Já a alergia ao leite é uma reação do sistema imune (pode ser causada por imunoglobulina E (IgE), não mediada por IgE ou reações mistas) relativa a presença de algum constituinte do leite, geralmente de suas proteínas. A tabela abaixo, exemplifica as principais diferenças entre as condições clínicas. [2]
Intolerância à lactose | Alergia ao leite | |
Início dos sintomas | 5-6 anos de idade | Picos durante o primeiro ano de vida |
Componente alimentar envolvido | Lactose, o principal carboidrato digerível encontrado no leite de mamíferos, incluindo o leite humano | Proteínas do leite de vaca |
Sintomas gastrointestinais | Dor abdominal, náuseas, inchaço, flatulência e diarréia (menos comuns: constipação, vômitos) | Mediado por IgE: urticária, angioedema de lábios, língua e palato; prurido oral; náusea; dor abdominal em cólica; vômito; diarréia Não mediados por IgE: vômitos, diarreia, sangue e/ou muco nas fezes, dor abdominal, má absorção muitas vezes associado a falha no crescimento ou ganho de peso insuficiente |
Sintomas extraintestinais | Dor de cabeça, vertigem, comprometimento da memória e letargia | Mediado por IgE: pele (urticária aguda e/ou angioedema); sistema respiratório (coceira nasal, espirros, rinorréia ou congestão e/ou conjuntivite, tosse, aperto no peito, sibilos ou falta de ar); outros (sinais ou sintomas de anafilaxia) Não mediado por IgE/IgE: eczema atópico |
Tratamento dietético | Dieta com baixo teor de lactose | Dieta sem proteínas do leite de vaca |
Fonte: Adaptado e traduzido de (Di Costanzo & Berni Canani, 2018)
Misselwitz B, Butter M, Verbeke K, Fox MR. Update on lactose malabsorption and intolerance: pathogenesis, diagnosis and clinical management. Gut. 2019 Nov;68(11):2080-2091. doi: 10.1136/gutjnl-2019-318404. Epub 2019 Aug 19. PMID: 31427404; PMCID: PMC6839734.
Di Costanzo M, Berni Canani R. Lactose Intolerance: Common Misunderstandings. Ann Nutr Metab. 2018;73 Suppl 4:30-37. doi: 10.1159/000493669. Epub 2019 Feb 19. PMID: 30783042.
Leis, Rosaura, María-José de Castro, Carmela de Lamas, Rosaura Picáns, and María L. Couce. 2020. “Effects of Prebiotic and Probiotic Supplementation on Lactase Deficiency and Lactose Intolerance: A Systematic Review of Controlled Trials” Nutrients 12, no. 5: 1487. https://doi.org/10.3390/nu12051487